Por
Luís
Aguilar
|
Os
psicoterapeutas são como os jogadores de
pocker,
ganhadores ou perdedores.
A maior parte dos pacientes
não quer realmente curar-se,
por isso fica com os perdedores.
Com efeito, um nevrótico,
quando procura a terapia
não é a cura que ele deseja, mas sim,
aprender a ser melhor nevrótico.
Eric
Berne |
Nasceu
há cem anos, em 1910, em Montreal (Canadá),
o criador da Análise Transaccional: Eric Berne.
Depois de ter terminado os estudos universitários
na Universidade McGill, uma Licenciatura em Medicina e
um Mestrado em Cirurgia, parte para os Estados Unidos
da América, onde viveu a maior parte da sua vida
e onde se doutorou em Psiquiatria. Naturalmente, adquiriu
a nacionalidade americana.
Relações
difíceis com a Psicanálise e o progressivo
afastamento de Freud
Trajecto
inevitável: a Psicanálise, com Paul Federn,
primeiro, no New York Psychoanalytic Institut e Erick
Erikson, mais tarde, já na Califórnia, onde
ficará até à sua morte, em 1970.
Com uma cólera nem sempre contida no coração
por lhe ter sido negada, após 15 anos de prática,
a admissão como Psicanalista, em 1956, pelo San
Francisco Psychoanalytic Institute - muito pouco vocacionado
para a inovação e para a crítica
fora da conhecida ortodoxia freudiana – que lha
recusou, muito provavelmente, pelos seus estudos sobre
a intuição e os livros que escreveu sobre
o conceito de inconsciente, que punham em causa a psicanálise
ortodoxa: a palavra subconsciente só é
aceitável desde que sejam aceites também
os termos pré-consciente e inconsciente Berne
1949, p.1). Essa recusa para além da irritação
que lhe causou e das consequências devastadoras
que teve na sua carreira, na carreira de quem sempre quis
acrescentar algo de novo à teoria psicanalítica,
acabaria por conduzir Eric Berne a, por processo catártico,
criar o seu próprio método de psicoterapia:
a Análise Transaccional. Contagiado pelos ares
inovadores da Califórnia, inicia o caminho menos
frequentado da criação de uma nova teoria
para a compreensão e análise do comportamento
humano. Chega rapidamente ao conceito de Estado do Eu
e, porque entendia que toda a teoria deveria ser compreensível
para todos, e diagramatizada, concebe a linguagem PAC-Pai-Adulto-Criança,
para ilustrar a complexa teoria da personidade tripartida:
os Estados do Eu.
Berne, confrontando-se ainda com os psicanalistas, dizia-lhes,
por um lado, que todos os termos acabados em ico
não eram mais do que um insulto, como por exemplo,
alcoólico e esquizofrénico, e, por outro
lado, afiançava-lhes que não existem doenças
incuráveis. Com efeito, Berne em vez de dizer
que uma pessoa era, por exemplo, um «homossexual
latente» ou um «esquizofrénico paranóico»,
punha-se no mesmo diapasão da pessoa e dela recolhia
a informação, utilizando a intuição
(Steiner, 1984, p.24).
Podem adivinhar-se ainda mais conflitos de Berne com a
Psicanálise e os psicanalistas quando questionava
os seus clientes do seguinte modo: - Porque não
se cura primeiro e só depois procura saber as razões
do seu mal-estar? (Berne, 1949). E aos seus colegas
psicanalistas dizia que se estivessem verdadeiramente
preparados para a profissão de terapeutas, deveriam
ser capazes de curar alguns tipos de doença numa
única sessão: - Curem-nos, não trabalhem
apenas para fazer progressos. Curem-nos o mais rapidamente
possível! Ora, a partir destes pressupostos
e por aquilo que se conhece da prática psicanalítica,
não é difícil antever uma guerra
psicológica fria. Mas Berne não estava só:
o número de técnicos e clientes descontentes
com a Psicanálise começava, então,
a ser significativo.
Analisemos, então, os três pecados mortais
de Berne, para os psicanalistas ortodoxos: os estudos
de Berne sobre a intuição, a fidelidade
aos comportamentos não verbais e a criação
de uma linguagem simples ao alcance de todos.
Intuição
e comportamento não verbal
Berne
começou a estudar a intuição e o
comportamento não verbal desde praticamente o início
da sua actividade profissional. Quando, trabalhava como
psiquiatra das forças armadas, em 1945, davam-lhe
apenas cerca de noventa segundos para fazer um diagnóstico
a cada um dos soldados regressados da guerra. Tinha mesmo
de recorrer à intuição para realizar
tão absurda tarefa.
Berne
dirige, então, a sua pesquisa para aspectos não
verbais do comportamento humano que, ao revelarem pensamentos
e intenções, se tornam bem mais verdadeiros
do que as palavras, que podem adulterar ou esconder muitos
outros aspectos significativos. Berne escreveu seis artigos,
entre 1949 e 1962, em que define a intuição
como o conhecimento baseado na experiência e
adquirido pelo contacto sensorial com o sujeito, sem que
o «intuidor seja capaz de saber formular, para si
e para os outros, como é que chegou exactamente
a determinadas conclusões. Considera ainda
que a intuição pode ser aperfeiçoada
com a prática e com a experiência e adverte
para a emergência de influências externas
que provocam a diminuição da intuição
ou mesmo o seu desaparecimento: o cansaço, alguns
tipos de estímulos exteriores e situações
em que o «intuidor» esteja a ser alvo de atenção
especial.
Acusado, uma vez mais, pelos psicanalistas de não
obedecer ao método científico, quedando-se
pelo empirismo primitivo, Berne respondia-lhes: - Há
um tempo para o método científico e um tempo
para a intuição, o primeiro traz-nos mais
certezas, o segundo oferece-nos mais possibilidades e
os dois juntos são a base sólida de um pensamento
criativo (Berne, 1949).
Berne (1953) considera que pelo comportamento exterior,
é possível aceder ao pensamento e às
sensações internas que nele se reflectem,
perspectiva que viria a tornar-se imprescindível
para a definição dos jogos psicológicos,
fundamentados estes na interacção entre
a comunicação manifesta e a comunicação
latente.
Eric Berne estava consciente de que a forma de tratamento
rápido que preconizava e a vulgarização
do vocabulário clínico que defendia, enervava
os psicanalistas e os terapeutas do diagnóstico
como um fim em si mesmo e dos palavrões que só
os iluminados especialistas compreendem. Conta-se
que Berne dizia aos clientes viciados pela prática
psicanalítica, que vinham ter com ele: - Ouça
lá meu caro, em vez de querer saber os porquês
do seu estado de saúde psíquico insatisfatório
e as razões ancestrais que determinam os seus comportamentos
e a sua infelicidade, porque não sai imediatamente
desse estado infeliz e põe-se noutro mais de acordo
com o que quer conseguir da vida e das relações
que estabelece com os outros?
Berne insistia no facto de o trabalho terapêutico
dever ser orientado no sentido da cura concreta e ou da
mudança, através da definição
de um contrato que, na sua opinião, poderia emergir
logo na primeira sessão e insurgia-se contra o
slogan, bastante difundido na época, o
terapeuta não pode prometer nada. Contrapunha
que em terapia não se trata de fazer progressos,
mas de curar, desde o primeiro minuto do trabalho terapêutico.
Com efeito, ao considerar o comportamento externo o reflexo
do que se passa no interior, Berne acreditava que ao mudar
o comportamento exterior acabar-se-ia por mudar a atitude
interna.
A
criação de uma linguagem psicológica
simples ao alcance de todos
Reconhece-se
hoje que Eric Berne conseguiu atingir o objectivo que
definiu para o seu trabalho, a criação de
um vocabulário psicológico e psiquiátrico
ao alcance de todos e não apenas de alguns iluminados
que levavam a vida a praticar o jazz, leia-se
a mistificar, a jogar com as palavras, a entreter-se com
brilhantes improvisos rítmicos, mas a esquecer-se
do que deveria ser o seu objectivo primeiro, o de ajudar
as pessoas a resolverem os seus problemas:
- Isso tudo é muito bonito mas não vejo
em que é que isso pode curar, frase que utilizava
para cortar os grandes discursos e os ares empolados e
narcísicos dos que exibiam as suas diarreias
mentais em colóquios, conferências,
encontros, etc.
O
inabalável propósito de curar as pessoas
no mais curto espaço de tempo
Transcrevemos
uma longa citação do último discurso
de Berne, dirigido a psiquiatras e psicólogos,
três semanas antes de morrer e que testemunha o
seu inabalável propósito de curar as pessoas
no mais curto espaço de tempo possível:
Quando um homem infecta o calcanhar com um espinho,
começa a coxear ligeiramente, já que os
músculos da perna se contraem. Para compensar esta
contracção, os músculos das costas
contraem-se também, e depois serão os músculos
da nuca, acabando por provocar uma forte dor de cabeça.
A infecção trará também febre
e aceleração do pulso. Enfim, o homem acabará
por infectar-se completamente, incluindo o cérebro.
Pode até desenvolver uma obsessão em relação
ao espinho e àqueles que, quem sabe, o puseram
no seu caminho. Passará então uma boa parte
do tempo a consultar advogados e a apresentar-se no tribunal.
A totalidade da sua personalidade está envolvida.
De seguida, telefona a um cirurgião que, depois
de o examinar, dirá:
- Bem, isto é um caso sério, você
está totalmente atingido pela infecção!
Como pode verificar, todo o seu corpo foi afectado pela
doença: tem febre, a respiração é
demasiado rápida, o seu pulso está acelerado
e tem os músculos contraídos. Penso que
serão precisos cerca de três ou quatro anos
para curá-lo, mas não lhe garanto o resultado
- na nossa profissão não podemos garantir
o que quer que seja - mas penso que dentro de três
ou quatro anos - é claro que isso depende bastante
da sua atitude - poderemos chegar ao fim desta situação.
O paciente responde: - Bem, está bem, dar-lhe-ei
uma resposta amanhã.
Seguidamente vai ver outro cirurgião, que lhe diz:
- Oh, o seu calcanhar está infectado por um espinho.
Vai buscar uma pequena pinça e tira-lhe o espinho.
A febre baixa, o ritmo das pulsações baixa,
os músculos da nuca e das costas distendem-se e,
finalmente, os músculos do pé relaxam.
O homem volta ao estado normal ao fim de quatro ou cinco
horas, talvez até menos.
Eis como a terapia se deve praticar: exactamente como
se fosse encontrado um espinho e, imediatamente, o mesmo
fosse retirado. Há imensa gente a quem isto enfurece
e que até conseguirá provar que o paciente
não foi analisado completamente. Poderemos, então,
ouvir coisas deste estilo: - O.K., doutor, quantos doentes
é que você já analisou completamente?
A resposta deveria ser a seguinte: - E você, está
realmente consciente da sua agressividade? Toda a gente
escreve artigos, mas há um único artigo
a escrever que deverá intitular-se: «Como
Curar os Pacientes?». É a única coisa
que vale a pena ser escrita, se quiserem realmente fazer
o vosso trabalho (Berne, 1971, pp.6-13).
Sobre os artefactos utilizados durante a terapia, Berne
não é menos condescendente para com os seus
colegas de profissão:
Um paciente está sentado numa cadeira e você
noutra. Estão lá apenas duas pessoas, mais
ninguém, e duas cadeiras para o conforto. Alguns
terapeutas nem cadeiras utilizam. Eis a verdadeira questão
para o psicoterapeuta: - O que é que eu faço
quando estou sentado numa sala com uma pessoa, a quem
chamam paciente e a mim terapeuta?
Absolutamente nada de “gadgets” - nenhuma
anotação no papel, nada de gravações,
nada de música, nada. É assim que se aprende
a fazer psicoterapia. Quando você aprender a fazer
isto e se tornar num perito, então, sim, pode começar
a utilizar equipamentos e recursos. Mas, para mim, a introdução
de distracções em qualquer tipo de psicoterapia,
normalmente quer dizer que o terapeuta não sabe
o que está a fazer. É muito difícil
saber-se o que se está a fazer em psicoterapia,
porque, na maioria das vezes, está-se ao mesmo
nível da Faculdade de Medicina da Universidade
de Paris, no século XVI, quando as pessoas utilizavam
grandes palavrões e realizavam muitas conferências,
mas os pacientes não melhoravam (Berne, 1997).
As
relações de Berne com os seus amigos e discípulos
Os
colegas e amigos de Eric Berne apontavam-lhe (e perdoavam-lhe)
as suas ambiguidades e contradições, lamentando
que ele não aplicasse a sua teoria a si próprio,
já que o tempo que dedicou a criá-la o impediu
de fruir dela. Berne aconselhou aos outros o que, afinal,
não conseguiu aplicar a si próprio,
mas nunca, ou muito raramente, alguém o viu triste
ou taciturno. A sua cara espelhava sempre uma expressão
sorridente; tinha sempre uma frase brincalhona e amigável
para cada um de nós e a sua voz profunda e sonante
dava-nos sempre afectuosas boas-vindas. (Cheney,
1971).
Berne, por seu turno, distinguia bem os amigos dos inimigos:
- Tendo de escolher entre a capela e a praça
pública, entre a complicação e a
simplicidade, coloco-me do lado das pessoas. Aqui e ali
lanço uma palavra para impressionar, que mais não
é do que um osso atirado para distrair os cães
de guarda académicos, enquanto corro em direcção
à porta do cavalo para dizer bom dia aos meus amigos
(Berne, 1983, p.9).
Evolução
e Continuadores
Berne
não cessou de evoluir e de mudar constantemente
a percepção que tinha das teorias que ele
próprio desenvolveu ao longo dos anos. A noção
de Cenário de Vida só se tornou evidente
para Berne, quando se apercebeu que havia uma semelhança
exacta entre as situações de mal-estar e
de stress dos seus clientes, no momento presente e as
que os mesmos diziam ter vivido no passado. Ora, como
as situações criadas no passado tiveram
causas e razões que dizem respeito a um contexto
longínquo, porque é que se reproduzem da
mesma forma, no presente, quando as causas que as provocaram
já não existem? E a resposta a esta questão
ocupou Berne desde que a formulou até duas semanas
antes da sua morte permatura, altura em que termina o
livro What Do You Say, After You Say Hello!
Por entre inúmeros autores, contam-se pelos dedos
da mão aqueles que souberam continuar o trabalho
de Eric Berne: Claude Steiner, o amigo mais próximo
de Berne, aprofundou a noção de Cenário
de Vida e criou a teoria da Economia de Estímulos
(strokes); Stephen Karpman, autor do Triângulo
Dramático; John Dusay criou os Egogramas; Dorothy
Jongeward e Muriel James introduziram as noções
de Vencedor, Não-Vencedor e Perdedor; Fanita English
e Richard Erskine aprofundaram a noção de
disfunção (racket) ou sentimentos
parasitas; Jacqui Schiff inventou as noções
de simbiose e de passividade; Taibi Kähler e Mavis
Klein desenvolveram os conceitos de Mini-Cenário
e Palavra de Ordem; Mary e Robert Goulding ocuparam-se
da Terapia da Redecisão e Thomas Harris, para além
da divulgação de grande parte do vocabulário
da AT, estudou a aplicação da Análise
Transaccional às áreas sociais e da formação
pessoal.
Referências
bibliográficas
AGUILAR,
Luís (1999). Análise Transaccional:
Guia para o Auto-Conhecimento. Lisboa: Fim de Século.
AGUILAR, Luís (2009). Acção
Transaccional. Montreal: Aguilar Edições.
BERNE, Eric (1949). Psychiatric Quarterly. XXIII, 1949:
The Nature of Intuition. Pp. 203–226.
In Berliner, B. (1950). Psychiatric Quarterly. XXIII,
1949. Psychoanal Q., 19:611-612.
BERNE,
Eric (1953). Concerning the Nature of Communication."
Psychiatric Quart. 27: 185-198, 1953. No. 3.
BERNE,
Eric (1971). Psychiatrie et psychanalyse à
la portée de tous. Paris: Fayard.
BERNE,
Eric (1971, 1990). Analyse Transactionnelle et psychothérapie.
Paris: Payot.
BERNE,
Eric (1971). Away from the Impact of Interpersonal
Interaction or Non-Verbal Participation. Transactional
Analysis Journal. Memorial Eric Berne. San Francisco:
ITAA, 1(1), 6-13.
BERNE,
Eric (1983). Que dites-vous après avoir dit
bonjour? Paris: Sand.
BERNE, Eric (1997). Que dites-vous après
avoir dit bonjour? Paris: Tchou-Sand.
CHENEY, Warren (1977). Eric Berne: Biographical
Sketch. TAJ, 1:1. pp. 4-10
STEINER, Claude (1984). Des scénarios et
des hommes. Paris: Epi.
Bibliografia de Eric Berne:
http://www.itaa-net.org/ta/BerneBibliography.htm
Artigos
em Linha
A
História de Eric Berne, o Criador da Análise
Transacional
©
Luís
Aguilar